domingo, setembro 10, 2023

Memento Mori

     A atividade em si era trivial. Puxar o cateter, para que a parte não colonizada ficasse para fora, evitando contaminação, um corte simples com a tesoura e repassar o guia pelo orifício e assim permitir que o trajeto até a veia permanecesse real e a troca  fosse feita sem maiores esforços. Tudo igual como nos últimos 15 anos ou mais. Até que eu precisei identificar o tal orifício. Lá estava o cateter, sangrando em profusão e eu não conseguia fazer o guia entrar no danado do cateter. Meus olhos não conseguiam identificar com  precisão o furo, o guia ou porra nenhuma. Então resolvi me valer do tato para terminar  o que comecei. Minha primeira punção em braile.

    Já haviam uns 2 anos que as coisas já estavam acontecendo. Bulas não lidas fotos fora de foco. Culpa da luz. Nada. Desculpas para o óbvio. Ao virar os quarenta a tradição da família se concretizou. A presbiopia desmascara os defeitos inerentes e até então ocultos. Humilhado, não havia alternativa além de encarar, ainda que fora de foco, a realidade

    Sempre tive uma relação romântica com óculos. Sendo um rato de biblioteca, sempre aspirei a marca do iniciado. Mas Deus, mais sábio que esses desvairados mortais, não se dá ao trabalho de realizar sonhos vãos e sem maior consequência. Eu ainda não precisava ser punido pelos meus desejos inconsequentes. Apesar do sangue míope, passei a tenra juventude incólume.

    Mas as coisas mudaram, me vi obrigado a procurar ajuda profissional. Hipermetropia e presbiopia. E zero grau de astigmatismo. Globos oculares perfeitamente esféricos. Outra decepção. Como descendente indígena, coisa absolutamente banal neste país, queria culpar o astigmatismo pela minha baixa tolerância a luminosidade. Ganhei de cara uma lente bifocal..

    Algum tempo já se passou, e vou me adaptando a realidade. Só preciso deles para as pequenas coisas. Quero dizer... as pequenos objetos. Atividades como leitura e precisão. Ou boa parte das atividades, ditas sérias. O danado escorrega, se suja, me aperta o nariz. Lhe instalei garrinhas, assim ele não pode escorrer inconsequentemente.  Pânico quando você está estéril e precisa permanecer assim.. As posturas de leitura são limitadas mas a coluna já não é amis a mesma. Não preciso deles para caminhar, dirigir ou fazer a maior parte das atividades.

    E no entanto estou sempre com ele dependurado. Inseguro? De jeito nenhum. Incorporaste a órtese? Ainda não, sem banhos enquanto "montado". É claro que não quero perder oportunidades, que não são tantas... Mas o fato é que ele está ali para me lembrar que o tempo passa, as coisas mudam e que a areia escorre sem muita consideração por ninguém.